O Governo quer retirar os benefícios fiscais concedidos em 2001 às instituições religiosas não católicas e às instituições particulares de solidariedade social (IPSS), mas mantendo os apoios concedidos desde 1990 à Igreja Católica.
A iniciativa não foi comunicada às diversas comunidades e aparece sem qualquer referência, como uma revogação de benefícios fiscais, em três linhas da proposta de Orçamento do Estado (OE) de 2011 – a votar pelo Parlamento na generalidade a 3 de Novembro próximo. Apesar de questionado anteontem, o Ministério das Finanças não deu qualquer explicação sobre o carácter discriminatório da medida nem sobre a poupança esperada.
Entre membros de comunidades religiosas não católicas, colocados a par da decisão governamental, a primeira impressão foi de incredulidade e a segunda de espanto. A mesma reacção encontrou-se na comissão da liberdade religiosa, órgão independente de consulta da Assembleia da República e do Governo, prevista na Lei de Liberdade Religiosa (Lei 16/2001) e com “funções de estudo, informação, parecer e proposta em todas as matérias relacionadas com a aplicação da Lei de Liberdade Religiosa”.
O seu vice-presidente, Manuel Soares Loja, defende que, caso venha a ser aprovado esse artigo do OE de 2011, trata-se de “um retrocesso” e de uma violação de dois princípios constitucionais – o da igualdade e o da separação entre o Estado e a religião. “A intenção já em si é uma má notícia, mas se for aprovado é um retrocesso ao princípio da igualdade”, afirma Manuel Soares Loja. “Perceberíamos, se todas as igrejas fossem afectadas.” Assim sendo, parece que passa a haver “cidadãos de primeira e cidadãos de segunda”.
Em 1990, o Governo Cavaco Silva concedeu, na prática, a isenção de IVA à Igreja Católica, conferência episcopal, dioceses, seminários e outros centros de formação destinados à preparação de sacerdotes e religiosos, fábricas da Igreja, ordens, congregações e institutos religiosos. Essa isenção incidiu sobre objectos, bem como a construção, manutenção e conservação de imóveis destinados “ao culto, à habitação e formação de sacerdotes e religiosos, ao apostolado e ao exercício da caridade”. As IPSS foram incluídas no rol das entidades beneficiárias.
Na altura, a forma encontrada entre o Governo e a Comissão Europeia, de maneira a não contrariar as regras comunitárias, foi a de cobrar o IVA às actividades económicas da Igreja Católica, mas conceder-lhes um subsídio igual ao reembolso do IVA suportado. Mas essa prática fiscal em benefício unicamente da Igreja Católica seria mais tarde alargada.
Em 2001, a lei de liberdade religiosa estendeu o benefício às outras religiões radicadas no país, como forma de respeitar o princípio constitucional de não discriminação. Ora, passados nem dez anos, o Governo pretende revogar parte dessa própria lei.
O OE de 2011 prevê, no seu artigo 127.º, a revogação, primeiro, do artigo 2.º do Decreto-Lei 20/90 que consagrou a isenção de IVA na aquisição de bens e serviços relacionados com a actividade desenvolvida pelas IPSS.
Depois, propõe-se ainda a revogação do artigo 65.º da Lei de Liberdade Religiosa. Esse é o artigo que veio, precisamente, conceder às “igrejas e comunidades religiosas radicadas no país, bem como os institutos de vida consagrada e outros institutos”, o direito de opção pelos benefícios concedidos à Igreja Católica no Decreto-Lei 20/90.
Público, 23 de Outubro de 2010